Na Fila do Supermercado
Mário Prata
Pois
foi numa dessas filas que o fato se deu. Era uma bela fila, de umas dez
pessoas. E em supermercado, com aqueles carrinhos lotados, a gente ali olhando
a mocinha tirar latinha por latinha, rolo por rolo de papel higiênico, aquela
coisa que não tem fim mesmo. E naquela fila tinha um garotinho de uns dez anos,
que existe apenas uma palavra para definir a figurinha: um pentelho. Como muito
bem define o Houaiss: “pessoa que exaspera com sua presença, que
importuna, que não dá paz aos outros”.
Pois
ali estava o pentelhinho no auge de sua pentelhação. Quanto mais demorava, mais
ele se aprimorava. E a mãe, ao lado, impassível. Chegou uma hora que o garoto
começou a mexer nas compras dos outros. Tirar leite condensado de um carrinho e
colocar no outro. Gritava, ria, dava piruetas. Era o reizinho da fila. E a mãe,
não era com ela.
Na fila ao lado (aquela de velhos, deficientes e
grávidas), tinha um casal de velhinhos. Mas velhinhos mesmo, de mãos dadas.
Ali, pelos oitenta anos. A velhinha, não aguentando mais a situação, resolveu
tomar as dores de todos e foi falar com a mãe para que ela desse um jeito no
garoto, tomasse uma providência. No que a mãe, de alto e bom tom disse:
-Educo meu filho assim, minha senhora. Com liberdade,
sem repressão. Meu filho é livre e feliz. É assim que se deve educar as
crianças hoje em dia.
A velhinha ainda ameaçou dizer alguma coisa, mas se
sentiu antiga, ultrapassada. Voltou para a sua fila. Só que não encontrou o seu
marido, que havia sumido.
Não demorou muito e voltou o marido com um galão de água
de cinco litros e, calmamente, se aproximou da mãe do pentelho, abriu e
entornou tudo na cabeça da mulher.
-O que é isso, meu senhor?
O velhinho colocou o vasilhame no seu carrinho e
enquanto a mulher esbravejava e o pentelho morria de rir, disse bem alto:
-Também fui educado com liberdade!!!
Foi ovacionado.
O Labirinto dos Manuais
Walcyr Carrasco
Há alguns meses
troquei meu celular. Um modelo lindo, pequeno, prático. Segundo a vendedora,
era capaz de tudo e mais um pouco. Fotografava, fazia vídeos, recebia e-mails e
até servia para telefonar. Abri o manual, entusiasmado. “Agora eu aprendo”,
decidi, folheando as 49 páginas. Já na primeira, tentei executar as funções.
Duas horas depois, eu estava prestes a roer o aparelho. O manual tentava prever
todas as possibilidades. Virou um labirinto de instruções!
Na semana seguinte,
tentei baixar o som da campainha. Só aumentava. Buscava o vibracall, não
achava. Era só alguém me chamar e todo mundo em torno saía correndo, pensando
que era o alarme de incêndio! Quem me salvou foi um motorista de táxi.
— Manual só
confunde – disse didaticamente. – Dá uma de curioso.
Insisti e
finalmente descobri que estava no vibracall há meses! O único problema é que
agora não consigo botar a campainha de volta!
Atualmente, estou
de computador novo. Fiz o que toda pessoa minuciosa faria. Comprei um livro. Na
capa, a promessa: “Rápido e fácil” – um guia prático, simples e colorido!
Resolvi: “Vou seguir cada instrução, página por página. Do que adianta ter um
supercomputador se não sei usá-lo?”. Quando cheguei à página 20, minha cabeça
latejava. O livro tem 342! Cada vez que olho, dá vontade de chorar! Não seria
melhor gastar o tempo relendo Guerra e Paz?
Tudo foi criado
para simplificar. Mas até o micro-ondas ficou difícil. A não ser que eu queira
fazer pipoca, que possui sua tecla própria. Mas não posso me alimentar só de
pipoca! Ainda se emagrecesse... E o fax com secretária eletrônica? O anterior
era simples. Eu apertava um botão e apagava as mensagens. O atual exige que eu
toque em um, depois em outro para confirmar, e de novo no primeiro! Outro dia,
a luzinha estava piscando. Tentei ouvir a mensagem. A secretária disparou todas
as mensagens, desde o início do ano!
Eu sei que para a
garotada que está aí tudo parece muito simples. Mas o mundo é para todos, não
é? Talvez alguém dê aulas para entender manuais! Ou o jeito seria aprender só
aquilo de que tenho realmente necessidade, e não usar todas as funções. É o que
a maioria das pessoas acaba fazendo!
(Walcyr Carrasco, Veja SP, 19.09.2007. Adaptado)
O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha:
hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na
certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a
nenhum.
— Explique isso ao homem —
ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas.
Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando
ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que
não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo
despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já
se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a
ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse
completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de
arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o
mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal
seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo,
impulsionada pelo vento.
Aterrorizado,
precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando
ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro
interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que
já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria.
Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais
silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá
embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os
andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os
andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu
apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo
de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos láde baixo...
Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido,
embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os
passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o
elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada
passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada.
Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna
do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que
não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo
abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser
algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada
vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se
naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não —
repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do
elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.
Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a
chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar".
Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada
de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O
elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta!
— gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que
outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado,
apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho
de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora —
disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços
para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro
está nu!
E correu ao telefone para
chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui
na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a
gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra
dentro, minha filha!
Maria, a esposa do
infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um
foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos
minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia —
disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da
televisão.
O homem trocado
Luís
Fernando Veríssimo
- Tudo perfeito – diz a enfermeira, sorrindo.
- Eu estava com medo desta operação…
- Por quê? Não havia risco nenhum.
- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma
série de enganos…
E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de
bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais,
que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos.
Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua
verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera
explicar o nascimento de um bebê chinês.
- E o meu nome? Outro engano.
- Seu nome não é Lírio?
- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e…
Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo
castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira
entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na
lista.
- Há anos que a minha conta do telefone vem com
cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
- O senhor não faz chamadas interurbanas?
- Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira
com outro. Não foram felizes.
- Por quê?
- Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia
intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca
alegria, quando ouvira o médico dizer:
- O senhor está desenganado.
Mas também fora um engano do médico. Não era tão
grave assim. Uma simples apendicite.
- Se você diz que a operação foi bem…
A enfermeira parou de sorrir.
- Apendicite? – perguntou, hesitante.
- É. A operação era para tirar o apêndice.
- Não era para trocar de sexo?
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